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terça-feira, 17 de abril de 2012

CRÔNICA DA CIDADE 16/04/2012



SEVERINO FRANCISCO -   Correio Braziliense

CEMITÉRIO DE ESTRELAS

Certa noite, Maria Luisa Ataíde teve um sonho com o escritor português Camilo Castelo Branco, autor de Amor de perdição, Amor de salvação e tantos outros clássicos. Carioca, mas de família maranhense, desde a adolescência, ela devorou romances com a devoção dos leitores tão apaixonados que se tornam escritores. A partir sonho com Camilo, começou a fazer uma varredura nos sebos à procura de livros do escriba, um dos grandes mestres da língua. Mergulhou no universo romântico, conturbado, dramático, passional, perpassado pela perdição e pela salvação. Sem que se desse conta, acabou constituindo uma coleção camiliana de exemplares raros e raríssimos. Havia um livro, Herança de lágrimas, de autoria de Ana Plácido, esposa de Camilo, publicado no século 19, tão raro que nem a Biblioteca Nacional de Portugal tinha mais em seu acervo.

Ao saber, Luisa entrou em contato e se dispôs a doar a preciosidade para que ficasse guardada com todo o desvelo merecido. Havia um empecilho: eles não dispunham de recursos para financiar a viagem até Portugal. Mas essa história que começou com um lance de literatura fantástica ou bíblica reservava outras peripécias surpreendentes. Luisa mora em Brasília desde 1975 e trabalha no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. O TJDFT promove, anualmente, um concurso literário para os seus funcionários e ela resolveu se inscrever nas três categorias: poesia, conto e crônica.

Ela varou madrugadas, escrevendo e reescrevendo, incessantemente, um conto sobre a vida de Camilo, intitulado Cemitério de estrelas. A narrativa evoca a estrutura dos textos do argentino Jorge Luís Borjes, pois o ensaio se mistura à ficção. Evoca o dia de junho de 1890, em que Camilo Castelo Branco, nascido em 1825, autor de mais de 200 livros, resolve dar um ponto final em sua vida, ao passar por uma grave crise existencial em razão da descoberta de que estava irremediavelmente cego. O texto começa em um tom bastante realista e documental, mas logo envereda por uma dimensão fantástica, pois a narrativa é conduzida pelo ponto de vista de uma legião de personagens, habitantes do limbo de um “cemitério de estrelas”, à espera de ganhar o direito à vida nos livros, mediante a decisão do escritor: “A espada é pena umedecida em tinta a escolher a esmo, um ou dúzias de nós para conhecer a luz dos dias.”

Os personagens entram em desespero ao perceberem que o escritor, com o poder de insuflar-lhes o sopro da vida, não existe mais. Vislumbram um rapaz parado do outro lado da ponte. É Simão Botelho, personagem de Amor de perdição, de Camilo Castelo Branco, que acena e grita: “Todo amor, acreditem, é de salvação!”. Os candidatos a personagens da ficção de Camilo jazem no cemitério de estrelas. Logo depois da morte do escritor, um misterioso incêndio arrasou com a casa onde morava: “Somos ferro, pedra, poeira e pó. Sopro divino a remover cinzas”.

Luísa não ganhou o concurso com o conto Cemitério de estrelas. Em compensação, conquistou o primeiro lugar na categoria poesia, com um despretensioso poema intitulado Memórias brancas, dedicado a Ana Plácido. Com o dinheiro ganho no concurso literário, Luisa pôde ir a Lisboa entregar, pessoalmente, o exemplar raríssimo de Herança de lágrimas para a Biblioteca Nacional de Portugal. Camilo deve estar bastante satisfeito, se é que não foi ele quem armou tudo isso.


Nota do Blog: O Concurso Literário deu-se em 2008 e foi  patrocinado pelo Sindicato dos Sevidores da Justiça.SINDIJUS. A entrega do livro de Ana Plácido em Portugal deu-se pelo esforço da escritora portuguesa que mora em Lisboa,  Teresa Passos, junto à BNP.
O jornalista Severino Francisco  surpreendeu-me com esta crônica linda e não houve tempo de revermos alguns detalhes. Grata a ele pelas palavras .
Luísa Ataíde

CÉMITÉRIO DE ESTRELAS

MEMÓRIAS BRANCAS

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