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sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Entre aspas- Clarice





Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero uma verdade inventada.
Clarice Lispector

domingo, 2 de agosto de 2015

SOBRE A ARTE DO CONTO EM LUISA ATAIDE


«Na verdade, um escritor nunca está só.
 Na verdade, um escritor tem a divindade nos dedos ao criar pessoas, escrever estórias e decidir destinos»
     Luisa Ataíde “O Entregador de livros” (Crônica)


   Entre o sonho e a escrita há milhões de chaves de cofres entreabertos. Entre estas chaves gostaria de colocar a contista brasileira Luisa Ataíde.
     Mas as chaves procuram a fechadura de um secreto jardim. É um jardim de magnólias. A magnólia, uma flor que pode ser também o nome de uma mulher tal como acontece no conto “O Rouxinol e a Cotovia”. Eis pertinho de nós essa mulher-personagem que se transfere da alma da escritora para a folha de papel, com todo o mistério da escritora e da personagem: “Se pudesse, eu escreveria tudo que vivo num diário e depois de findo o dia, voltaria ao passado, estendida sobre uma cama com lençóis branquinhos”. Rebuscando-se e desocultando-se, há um sentido novo e inesperado neste, como o há igualmente em muitos outros dos seus contos.
     Encontramos, a cada momento, Luisa Ataíde a escrever com a singeleza e a criatividade de um princípio do mundo. Cada conto é uma história a que Luisa Ataíde transmite uma novidade, uma intensidade desconstrutora daquilo que ultrapassa a lógica. Essa mesma lógica que transborda do real. Real e aparência, lógico e irracional, verdadeiro e falso entrecruzam-se como num bailado, na escrita de Luisa Ataíde.
     Na autora de «O Cemitério de Estrelas»  ̶  um dos seus mais belos contos  ̶  a literatura é uma reconstrução a partir de ruínas. O mundo é representação de alguma coisa que não está lá, mas que nós lhe atribuímos. E a atribuição de alguma coisa mais ao mundo é transferida para a força imagética presente nos contos de Luisa Ataíde. Escreve em «O Rouxinol e a Cotovia»: “Enquanto todos dormem espero o sono que ronda o quintal lá fora”. Em «Ponte sobre Almodóvar», destacamos a frase: “Das paredes nasciam lentamente as vibrações da música”. E do conto «O Cometa Azul», não resistimos a esta metáfora: “O Menino passou naquela casa, que nem era realmente uma casa, apenas uma semana”.
     No site internético “Harmonia do mundo” têm sido publicadas muitas destas peças literárias que nós colocaríamos na linha de Clarisse Lispector ou de Fernando Pessoa. O som e a voz inaudível de Luisa Ataíde são a plenitude na escrita densa e simples desta autora nascida no Rio de Janeiro, em 1957.
     Candidata a alguns prémios literários, desde o «Prémio Rachel de Queiroz (2º Concurso Literário)», a «Anjos de Prata» e ao «Delicatta – Projecto Literário», em todos ficaria classificada em primeiro lugar. Os poucos contos publicados em livro estão esparsos por Colectâneas, mas não estão reunidos em obra de sua exclusiva autoria. Esperamos ver, em breve, a reunião de todos aqueles textos que têm estado a ser publicados apenas em site ou blogues internéticos. 
     No caótico cenário da criação primordial a autora molda cada palavra como se fosse ainda uma palavra desconhecida, esquiva e sem um destino. Tudo nela está envolto numa poeticidade de raiz. “As lembranças estavam se tornando branquinhas como areia entre os dedos e distante como um canto de infância”, escreve Luisa Ataíde em «O Poço dos Desejos». Em «Os Girassóis Azuis», avança: “A parede da sala de jantar é de vidro e pode-se ver o vento balançando as pétalas grandes”. No conto «A Caixa», diz a certo passo: “Tentou olhar o planeta mais de perto e olhou o endereço entre os dedos”. Transcrevemos ainda uma PASSAGEM de «Quartos Crescentes»: “O relógio sobre a mesa insiste em dar voltas em torno das três horas”.
     A surrealidade é uma marca do conto de Luisa Ataíde, mas essa surrealidade assume uma inegável importância porque imbuída de uma candura inexplicável a tocar aquilo que há de mais belo na natureza humana.
     Podíamos multiplicar os exemplos da riqueza metafórica e do esplendor artístico do conto surrealista de Luisa Ataíde. Cada conto de Luisa Ataíde é uma obra de arte. As palavras surreais, adivinhando-se nas significações e nos sentidos, tocam o céu com o toque do realismo naturalista presente num humano a transcender-se na imaginação da construção literária.
     Os jogos das palavras articulam-se com os jogos das ideias e estes emaranham-se nos jogos das significações que se enovelam, por sua vez, com os jogos dos sentimentos forjados nas tempestades da vida quotidiana, designadamente da mulher.
    Em todos os contos de Luisa Ataíde há uma poética que joga incessantemente com as entrelinhas da arte da escrita. Com a ingenuidade lúdica com que cobre a literatura, Luisa Ataíde inscreve-se na mais alta ficção de Língua portuguesa.
     A sua sabedoria descobre-se a cada frase. O seu domínio da palavra  traça-lhe um lugar de destaque na arte de construir novos edifícios na ficção. Com um sentido da arte de escrever apurado, transmite o sonho como se fosse um devaneio que só tem verdadeiro sentido quando a conduz à escrita.
     A autora de «O Cometa Azul» ou de «Deixai Vir a Mim» revela a força da palavra a transfigurar-se em artista do conto. Aqui está Luisa Ataíde a escrever pequenos contos de encantar, como se cada um deles fosse uma vida inteira. Em cada um deles vive sempre o delírio da sua enorme criatividade literária.  Com a arte ao serviço da imaginação, arrisca as palavras como se pintasse uma pequena tela. Aqui a pintura que ela não tem também deixado de cultivar.
     Com as palavras, Luisa Ataíde desenha enredos labirínticos e solta deles um cântico poético. As palavras entrecruzam-se num discurso diegético de claro-escuro, em que emerge uma verdadeira teia teatral, como se fosse uma irrupção vulcânica de sentidos. A propósito, relevo uma PASSAGEM do conto intitulado «No coração de Bodhisattva Guan-Yin»: “O primeiro diagnóstico que recebemos era uma palavra feminina e grande”. Aqui vemos Luisa Ataíde correndo atrás das palavras como se elas fossem os únicos sinais ou os guias exclusivos de uma vida entrecortada por estranhas formas de vida.
     Em cada um dos seus belos contos somos confrontados com um mundo a tocar a simplicidade de uma chávena de café ou de um canto de ave ou, muito simplesmente, de um silêncio cortado pelo perfume do incenso.

Lisboa, 25 de Março de 2010
Teresa Ferrer Passos