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HISTÓRIA DA MINHA VIDA- GEORGE SAND






HISTOIRE  DE MA 

VIE


(Livro III)


Caridade para com os outros; 
Dignidade para consigo mesmo; 
Sinceridade perante Deus.

Eis a epígrafe deste livro,
George Sand
15 de abril de 1847.



1ª edição é de 1856, tendo sido publicada por Michel Lévy Fréres, Libraires-Editeurs (Paris), em 10 pequenos volumes. George Sand começou a escrevê-la a 15 de abril de 1847, terminando-a a 14 de junho de 1855.






CAPÍTULO 1º



George Sand e seu meio-irmão Hippolyte
George Sand e seu meio-irmão Hipolyte
          Partimos rumo a Paris no início, creio, do inverno de 1810 a 1811, pois Napoleão entrara vencedor em Viena e desposara Maria-Luisa durante a minha primeira estadia em Nohant. Lembro-me dos lugares em que me encontrava, no jardim, quando ouvi essas duas notícias comentadas por minha família. Despedi-me de Ursulle; a pobrezinha mostrou-se inconsolável mas na volta de novo nos reuniríamos e, de mais a mais, eu me sentia tão feliz com a perspectiva de rever minha mãe, que permaneci quase insensível ao que me cercava. A experiência ensinava-me a compreender o que significava uma separação e eu principiava a adquirir a noção do tempo. contara os dias e as horas que havia passado longe longe do objeto exclusivo do meu amor. Eu queria um bem igualmente grande a  Hippolyte , a despeito do muito que me arreliava. Também ele se pusera a chorar ao ver-se pela primeira vez a ficar sozinho naquele casarão. Eu o  lastimava e gostaria que  minha avó o levasse conosco, mas nada me fazia chorar; minha mãe absorvera todos os meus pensamentos. E vovó que vivia me estudando, disse em voz baixa a Deschartres ( as crianças ouvem tudo): "Esta pequena não é tão sensível quanto eu supunha".

          Nesse tempo levava-se três longos dias, Às vezes quatro, para ir a Paris. E , entretanto minha avó viajava com cavalos de posta. Não podia porém pernoitar no carro e o percurso diário deixava-a exausta . Esse veículo próprio para grandes viagens era uma verdadeira casa ambulante. Ninguém ignora a quantidade de volume , a complicação de detalhes e a preocupação de conforto com que os antigos, principalmente as pessoas de hábitos requintados, faziam suas viagens. As inúmeras bolsas de berlinda iam abarrotadas de provisões de boca, de gulodices, de perfumes, de baralhos, de livros, de cadernos destinados aos registro de impressões, de dinheiro, de mil coisas, enfim. Minha avó e sua criada de quarto, munidas de mantas e travesseiros, reclinavam-se no banco de trás; eu ocupava o banquinho da frente e, embora estivesse muito bem acomodada, só a muito custo minha vivacidade se continha num espaço tão reduzido, e precisava esforçar-me para não dar pontapés nos que ficavam à minha frente. A permanência em Nohant transformara-,me numa criança irrequieta e turbulenta, e eu começava a gozar de uma saúde perfeita; mas essa vivacidade não tardaria a diminuir , e em breve eu me tronaria outra vez doentia, pois nunca me dei co  o clima de Paris.

          Nem por isso desgostei da viagem. Era a primeira vez que não me deixava vencer pelo sono que o rodar dos veículos provoca nas crianças pequenas, e aquela sucessão de paisagens e objetos novos mantinha-me de olhos arregalados e espírito alerta.

          


          Todavia, não pode haver percurso mais triste e mais cacete do que o que vai de Châteaurouz a Orléans, e no qual se atravessa toda a  Sologne, região árida , sem beleza, sem poesia. Eugène Sue cantou, não obstante, os rústicos encantos e a graça selvagem dessa parte da França, e sua admiração é sincera, pois ouvi-o confirmar verbalmente o que escreveu.Mas, seja devido à feiura das zonas que margeiam a estrada, seja devido À antipatia que me inspiram as regiões planas, o fato é que a Sologne que atravessei mas de cem vezes, talvez, a todas as horas do dia e da noite e em todas as estações do ano, pareceu-me sempre mortalmente enfadonha e vulgar. A vegetação nativa é nela tão pobre quanto a cultura. Os pinheiras em formação ainda não adquiriram personalidade; são manchas de um verde berrante num solo incolor. A terra é pálida e descorada como os seus tojais , como a casca ressequida de suas árvores, como o seu gado , e sobretudo, como os seus habitantes, cuja faces chegam a ser lívidas- vasta, infeliz e insalubre região que definha numa espécie de marasmo moral e físico do homem e da natureza,

          Os poetas e os pintores, em geral, não dão importância a isso , e tiram partido dessa desolação que, em certas zonas, lhes fornece motivos de grande efeito artístico, com suas paisagens mortas e desertas. Confesso que existem paisagens assim, tão sedutoras em sua quietude, em sua beleza de água-parada , que para desejar que a civilização e a cultura lhes venham destruir a poesia, precisamos passar na miséria dos que nelas vegetam. Mas a Sologne nunca me inspirou semelhante ideia. Há no Creuse terras magníficas , vastos campos ondulados, ricos em vegetação nativa, semeados de límpidos lagos e de bosques seculares. Mas a Sologne não tem nada disso, pelo menos dentro do raio de vinte léguas tantas vezes abrangido pelos meus olhos observadores de viajante, Tudo nela é mesquinho e ensosso, exceto o horizonte amplo e o céu onde a beleza e a avida nunca deixam de brilhar.

          Mas essa diferença entre a Sologne e as outras regiões incultas que já vi, vem rocar, por certo, alguma coisa, A natureza, quando fecunda, nunca se contraria , e se os desertos do Creuse ostentam tão belas árvores, tão belos tojais e tao velos rebanhos, isso prova que o solo é excelente e que com pouco esforço produzirá grandes riquezas, ao passo que a Sologne precisará de tempo e consideráveis recursos para tornar-se uma zona de produção inferior. La Bremme, região menos fértil que a do Creuse, é todavia muito superior à Sologne. Os agricultores que não se iludam, pois os pintores e poetas enxergam longe. Quando a natureza lhes fala, ali onde eles não vêem mais que o colorido e a beleza exterior, há sempre mais alguma coisa, a fecundidade e a vida ocultam-se no seio da terra, Essa fecundidade se revela através de uma flora parasitária, através de uma inútil   luxúria, tal como entre os homens, os temperamentos generosos se revelam através de erros, quando privados de orientação. Mas nos espíritos pequeninos, o próprio vício  mesquinho como na Sologne até mesmo o feto o cardo são doentios.

          Tudo isso, porém , aqui fica dito sem a mais leve intenção de desmentir Eugène Sue. Ele deve conhecer, dentro daquela que percorri, uma Sologne bem diferente.

         Hoje , atravessar a floresta de Orléans nada significa. Mas, na minha infância , tal coisa representava ainda façanha audaz e temível. Enormes árvores sombreavam a estrada num percurso de duas horas e as carruagens sofriam frequentes assaltos por parte de bandoleiros, complementos obrigatórios sem os quais as viagens muito ficariam prejudicadas no capítulo das emoções. Era preciso apressar os postilhões para que alcançassem esse trecho antes do cair da noite;p por mais que nos esforçássemos, porem, nessa primeira viagem feita com minha avó, as trevas nos surpreenderam em plena floresta. Minha avó nada tinha de medrosa e depois de ter tomado todas as medidas ordenadas pela prudência, alguma circunstância imprevista vinha anular-lhe as precauções, mantinha uma calma e uma serenidade admiráveis.Já sua criada de quarto não era tão calma, mas disfarçava o melhor que podia o seu nervosismo e ambas discutiam bastante filosofia o tema de sua mútuas apreensões. A mim , não sei por que , os salteadores não causavam o menor medo; vi-me, entretanto, tomada de um súbito e horrível pavor, ao ouvir minha avó dizer a Mademoiselle Julie: "Hoje em dia os assaltos não são muito frequentes, aqui, e a floresta foi muito desbastada o que era antes da Revolução. Nessa época o mato espesso e a ausência quase total de valas facilitavam a ação de salteadores que surgiam de imprevisto sem dar ás vítimas tempo de se defenderem. Por felicidade nunca sofri semelhante acidente em minhas viagens a Châteauroux , entretante Monsieur Dupin jamais atravessa esta floresta, verdadeiro antro de bandidos, sem se armar, a si e aos seus empregados, como se fossem para a guerra. Os roubos e os assassinatos, frequentíssimos,costumavam ser anunciados e indicados aos viajantes por um estranho processo. Depois de presos, julgados e condenados os bandoleiros, enforcavam-os nas árvores da estrada, no próprio local de seus crimes, de modo que ao passar por aqui viam-se , dos dois lados do caminho, a intervalos bem próximos pendurados ás árvores, cadáveres que o vento balançava sobre a cabeça da gente. Aqueles que frenquentavam muito a estrava ficavam conhecendo todos os enforcados e todo ano surgiam novos, prova de que o exemplo não adiantava lá grande coisa. Lembro-me de ter visto,durante o inverno, o cadáver de uma mulher muito alta que se conservou perfeito durante longo tempo e cujos cabelos negros esvoaçavam ao bento, enquanto os corvos a rondavam, disputando-lhe as carnes, Era um espetáculo macabro , e um fedor de carniça acompanhava a gente até as postas da cidade".

Marie Aurore de Saxe-  A avó.
          Minha avó, por certo, me julgara adormecida durante essa lúgubre narrativa.. Eu, entretanto, a ouvia mais que desperta, estarrecida de horror, um suor frio a escorrer-me pelo corpo, Era a primeira vez que a morte assumia aos meus olhos o aspecto de uma coisa temível ; isso não estava na minha índole, como já demonstrei, e no que diz respeito a mim nunca me preocupei com a forma sob a qual ela pudesse vir buscar-me. Mas aqueles enforcados, aquelas árvores, aqueles corvos, aqueles cabelos pretos, tudo isso produziu em meu cérebro um desfile de tão horríveis imagens, que meus dentes principiaram a ranger de medo. Não pensava, em absoluto, na possibilidade de ser assaltada ou morta naquela floresta. mas via os enforcados oscilando por sob os ramos dos antigos carvalhos e imaginava-os com as caras mais apavorantes deste mundo. Essa impressão de terror conservou-se em mim por  muito tempo , e todas as vezes que atravessávamos a floresta, até a idade de quinze ou dezesseis anos, revia-a com a mesma dolorosa nitidez. Por aí se vê o quanto as emoções da realidade se tornam insignificantes comparadas às que a imaginação nos cria.

          Chegamos a Paris e instalamo-nos à Rue Neuves de Mathurins , num lindo apartamento que dava para os vastos jardins situados do outro lado da rua e que de nossas janelas descortinávamos por inteiro, Minha avó mobiliara seu apartamento tal como antes da Revolução, com o que lhe fora possível salvar do naufrágio.  Tudo, porém, muito bem conservado e muito confortável. Seu quarto era forrado, tanto parede como móveis, de damasco azul celeste; tapetes por todo o lado e um fogaréu infernal em todas as lareiras.


          Eu nunca me vira tão bem instalada, e tudo me oferecia  motivos de assombro daqueles requintes de conforto , de um conforto bem maior do que o de Nohant. Mas,eu que me criara no modesto apartamento ladrilhado e dividido por tabiques da Rue Grange Batellière , não fazia questão de nada disso e não me deixava seduzir, em absoluto, por essas facilidades da vida, às quais minha avó gostaria que eu desse mais valor. Eu não vivia , não sorria , senão quando minha mãe estava do meu lado. Ela vinha ver-me todos os dias, e a paixão que eu lhe tinha aumentava ao fim de cada nova entrevista. Eu a devorava de agrados, e a coitada, vendo que isso fazia minha vó sofrer, era forçada a conter-me e a controlar suas próprias expansões. Deixam-nos sair juntas e nem era possível ser de outro modo, embora isso não estivesse de acordo , com o programa tralado, cujo objetivo era afastar-nos .  Minha avó nunca saía a pé e não podia dispensar a companhia de Mademosseille Julie, que além do mais era trapalhona, distraída e míope , e se saísse comigo seria capaz de perder-me, ou de deixar que algum veículo me atropelasse. Assim, pois, eu teria até perdido o hábito de andar, se minha mãe não me desse comigo longos passeios diários que me encantavam; a despeito das minhas perninhas curtas, de bom grado iria a pé até o fim do mundo, só pelo prazer de segurar-lhe a mão, de tocar em seu vestido e de contemplar ao seu lado todas as coisas que me mostrava. Tudo me parecia bonito, visto em sua companhia. Os boulevards transformavam-se num sítio encantado; os banhos chineses, com o mau gosta da sua gruta de conchas e os seus estúpidos budas, eram um palácio de hist´prias de fadas; os cães amestrados que dançavam nas calçadas, as lojas de brinquedos, os vendedores de estampas e de pássaros, tudo isso me deixava de cabeça virada, e minha mãe, detendo-se diante de tudo o que me interessava e alegrando-se comigo, criança grande que sempre fora, redobrava o meu prazer.

Sophie Victoire Delaborde ,a mãe de George Sand
          Minha avó tinha um discernimento muito maior e era dotada de alta intuição. Ela queria educar meu gosto e analisava com o seu perfeito senso crítico todos os objetos que me chamavam a atenção. "Veja que figura mal desenhada, dizia-me, que combinação de cores chocante, que composição, que linguagem, que trecho de música ou que toalete de mau gosto". Eu não podia compreender essas coisas senão com o tempo. Minha mãe, menos exigente e mais ingênua, permitia que se estabelecesse entre nós um intercâmbio de impressões mais direto. Quase todos os produtos da arte ou da indústria lhe agradavam, contanto que apresentassem formas risonhas e coloridos vivos, e ainda que não lhe agradassem, divertiam-na. Tinha a paixão da novidade, e as últimas modas pareciam-lhe sempre mais belas. Tudo lhe ia bem; nada lograva enfeiá-la ou tirar-lhe a graça, a despeito das críticas de minha avó, sempre fiel, e com razão, aos seus vestidos de cintura baixa e as saías amplas do Diretório.

          Minha mãe, sugestionada pela moda, desolava-se vendo minha avó vestir-me como uma velhinha . Das capinhas usadas, mas ainda perfeitas, de minha avó, faziam-me outras do mesmo feitio, e assim eu andava quase sempre de escuro, e todos os meus vestidos tinham a cintura no nível dos quadris. Nada poderia parecer mais horrível, numa época que as mulheres andavam com a cintura em baixo dos braços, No entanto, os corpos compridos eram bem mais elegantes. Meus cabelos castanhos e abundantes haviam crescido muito e por mais que os molhassem viviam a roçar-me os ombros com os seus caracóis. Tanto minha mãe atormentou vovó, que esta acabou permitindo que ela tomasse posse da minha infeliz cabeça para penteá-la à chinesa.

         Não se pode conceber penteado mais medonho e por certo foi inventado para pessoas de testa muito estreita. Consistia em escovar os cabelos, penteando-os em sentido contrário ao natural, até que ficassem bem esticados para cima. Fazia-se então um pericote bem no alto do crânio, que adquiria o formato de uma botija. Acrescentai a essa feiura o suplício de andar com os cabelos presos e esticados em sentido contrário ao natural; antes de oito dias de dores atrozes e de insônia, eles não se submetiam a crescer para cima, e a fim de habituá-los a isso, amarravam-os tão fortemente com um barbante, que a vítima ficava com a pele da testa repuxada e os cantos dos olhos erguidos, como as figuras dos leques chineses.

         Sujeitei-me cegamente a esse martírio, embora tanto me fizesse parecer feia como bonito, seguir a moda ou protestar contra os seus absurdos. Era desejo de minha  mãe , eu lhe agradava mais assim, portanto submeti-me com verdadeiro estoicismo. Vovó achou-me  pavorosa, e ficou desesperada. Não lhe pareceu prudente, entretanto, brigar por tão pouco, visto que minha mãe se esforçava o mais possível para ajudá-la a acalmar a exaltação do meu amor filial.

          Isso foi aparentemente fácil de inicio. Como mamãe me levasse a passear todos os dias e com frequência jantasse e passasse comigo parte da noite, eu só ficava longe dela enquanto dormia. Mas não tardou a reavivar-se em mim a predileção que ela sempre me inspirava , e tudo em consequência de uma circunstÂncia em que a atitude de minha avó me pareceu absolutamente condenável.




          Caroline nunca mais me vira, desde a  minha partida para a Espanha, e creio que minha avó impusera como condição essencial a mamãe, a ausência de qualquer contato entre mim e minha irmã. Por que essa aversão contra uma menina tão inocente, educada dentro de princípios tão severos e que foi em toda a sua vida um  modelo de austeridade? Ignoro-0, e nem mesmo hoje consigo explicá-lo. Desde que a mãe fora recebida e aceita, por que repudiar a filha e envergonhar-se dela? Havia nisso um preconceito, uma injustiça inexplicáveis da parte de quem, como minha avó, tão bem sabia colocar-se acima das opiniões do seu meio, sempre que lograva escapar a influências indignas do seu espírito e do seu coração. Caroline nascera muito tempo antes de meu pai ter conhecido minha mãe; meu pai tratara-a e amara-a como filha e ela fora a companheira ajuizada e complacente de meus primeiros anos, Era uma menina bonita e meiga, que para mim nunca teve outro defeito além do de ser demasiadamente rigorosa em suas ideia de ordem e de religião. Não vejo em que o seu contato poderia vir a prejudicar-,e, não compreendo que razão poderia eu ter para envergonhar-me perante a sociedade detê-la como irmã, a menos que não se tenha uma origem nobre , que provir do povo seja uma desonra, pois nunca soube a que classe social pertencera o pai de Caroline, e é de presumir-se que fosse de condição tão humilde e obscura quanto minha mãe. mas não era eu também filha de Sofhie Delaborde, neta do vendedor de pássaros, bisneta da avó Cloquard? Como queriam fazer-me esquecer a minha origem plebeia e persuadir-me de que o caráter de uma criança gerada no mesmo ventre que eu era inferior ao meu, só pelo fato dessa criança não ter a honra de contar entre os seus antepassados paternos o rei da Polônia e o Marechal de Saxe? Que loucura, ou melhor que inconcebível infantilidade!  E quando uma pessoa de idade madura e de grande sensatez comete um infantilidade diante de uma criança quanto tempo, quantos esforços e quantas virtudes são precisos para apagar a impressão deixada na alma infantil!

          Minha avó realizou esse prodígio, pois embora essa impressão nunca chegasse a apagar-se em mim, nem por isso logrou opor maior resistência aos tesouros de ternura que sua alma me prodigou. Também  , se não houvesse em mim alguma razão profunda capaz de justificar a luta em que ela se empenhou para conquistar o meu amor, eu seria um monstro.. Sou, portanto, forçada a revelar os erros que a princípio ela cometeu, e agora que conheço a obstinação das classes aristocráticas, parece-me que a culpa não foi sua, mas unicamente do meio em quela sempre vivera e do qual, a despeito dos seus nobres sentimentos e do seu alto bom senso, nunca lograra libertar-se totalmente.

         Minha avó exigira, pois que carolina se tornasse para mim uma estranha, e como eu houvesse separado dela com a idade de quatro anos, talvez me fosse fácil esquecê-la. Creio mesmo que isso atpe ja teria se dado, se minha mãe não me houvesse falado tanto nela; quanto à afeição que eu lhe votava, não tendo podido desenvolver-se o suficiente antes da viagem à Espanha. Talvez não tivesse chegado a reavivar-se com tanto ardor, não fossem os violentos esforços com que tentaram arrancá-la do meu coração e a pequena cena de família que me causou tão terrível impressão.

          Caroline teria seus doze anos. Estava interna num colégio e cada vez que ia visitar nossa  mãe suplicava-lhe que a levasse ao apartamento de minha avó para ver-me, ou então que promovesse um encontro nosso em sua casa. Minha mãe fugia-lhe Às súplicas , não sei por meio de que argumentos pois não podia nem desejava expor-lhe a incompreensível exclusão que sobre ela pesava. A Coitadinha sem compreender o que se passava, não mais resistindo ao impaciente desejo de abraçar-me e levada apenas pelo coração, aproveitou-se da ausência de mamãe, numa noite em que esta fora jantar em casa de meu tio de Beaumont, e apareceu, alegre e afobada, no nosso apartamento. ) Persuadira a porteira do prédio em que  morava a companhá-la).  Bem que receava aquela avó que nunca conhecera; mas talvez supusesse jantando também em casa da tia, ou estivesse decidida a enfrentar tudo para rever-me.

          Eram sente ou oito horas. Eu brincava tristemente, sózinha no tapete do salão, quando ouvi algum rumor no cômodo vizinho. Minha pajem entreabriu a porta e chamou-me baixinho> Vovó parecia cochilar na sua poltrona, mas tinha o sono muito leve. No momento em que ei ia alcançando a porta na ponta dos pés, sem saber para que me chamavam, ei-la depserta e me pergunta em rom severo:

             _Onde é que você vai com uns ares tão misteriosos, minha filha?

             _Não sei, vovó. Foi a pajem quem me chamou.

            - Entre, Rose; que é que você quer?  Por que está chamando minha neta como que Às escondidas de mim?

           A pajem atrapalhou-se, hesitou e por fim disse:

           _ Pois bem, Madame é que Mademoiselle Caroline est´ lá fora.

          Esse nome tão puro e tão doce produziu um extraordinário efeito sobre minha avó. Julgou ela tratar-se de uma resistência franca por parte de minha mãe, ou de uma deliberação de enganá-la, traída desastradamente pela menina ou pela empregada. Pôs-se então a falar com dureza e rispidez, coisa que raríssimas vezes lhe aconteceu na vida:
       
         - Essa menina que trate de ir embora e nunca mais apreça aqui! ordenou. Ela sabe muito bem que não deve visitar minha neta. Aurore não se lembra mais dela e eu não a conheço! E quanto a você, Rose, outra vez que tentar introduzi-la em minha casa, será despedida!

        Rose, atemorizada , desapareceu. Eu fiquei onde estava, perturbada, assustada, quase aflita e arrependida de ter provocado a cólera de minha avó, pois sentia que semelhante emoção não era natural nela e devia fazê-la sofrer muito. O meu espanto diante da sua atitude impediu=me de pensar em Caroline, cuja lembrança era bem vaga em mm. De súbito porém, em meio aos cochichos que me chegavam do meu lado da porta, ouvi um soluço, abafado mas lancinante, um grito vindo do fundo da alma que varou o coração, despertando-me a voz do sangue.
Era, Caroline que chorava e partia inconsolável, vencida , humilhada, ferida no seu mais que justo orgulho de si própria e no seu ingênuo amor por mim.

          Imediatamente a imagem de minha irmã reavivou-se em minha memória e julguei vê-la tal como a vira na Rue Grange Batellière e em Chaillot, altinha, magra, meiga, modesta e solícita, escrava voluntária dos meus caprichos, cantando para fazer-me dormir, ou contando-me lindas histórias de fadas, Rompi em pranto e precipitei-me para a porta; mas era tarde ela já se fora. Minha pajem também estava chorando e acolheu-me em seus braços pedindo-me para não revelar À minha avó, já tão irritada contra ela, a sua tristeza. Minha vó chamou-me e tentou reter-me em seu colo para acalmar-me com argumentos; ofereci resistência , repeli seus agrados e atirei-me ao chão, a um canto da sala gritando: "Quero voltar para a casa de minha mãe! Não quero mais ficar aqui!"

         Mademoiselle Julie acudiu, por sua vez , e tentou chamar-me à razão. Disse-me que eu ia fazer minha avó ficar doente, mas eu nem sequer olhava para ela. " Você está fazendo sofrer a sua vovó que gosta tanto de você, que a adora, que vive para você. Eu, porém nada ouvia , tornando a gritar, com desespero que me levassem para junto de minha  mãe e de minha irmã. Tão grande fora o meu abalo e tal ponto o pranto me sufocava, que não foi possível pensar em obrigar-me a dar boa-noite a vovó. Puseram-e na cama, e dormi um sono intercalado de gemidos e suspiros.

          Por certo minha avó também passou mal a noite. Mais tarde compreendi tão bem o quanto ela era boa e meiga, que adquiri a certeza do quanto sofria quando se julgava na obrigação de fazer sofrer os outros; mas sua altivez não permitia que desse o braço a torcer, e era por meio de cuidados e mimos disfarçados que procurava fazer esquecer suas faltas.

         Ao despertar, encontrei na minha cama uma boneca que eu muito cobiçara na véspera por tê-la vista exposta numa casa de brinquedos, diante de cuja vitrine parara com minha mãe e da qual fizera uma pomposa descrição à minha avó. Era uma negrinha que parecia estar rindo às gargalhadas com os seus dentes alvos e seus olhinhos brilhantes em forte contraste com o rostinho cor de carvão. Roliça e bem feita de corpo, tinha um vestido de seda cor de rosa com franjas prateadas. Isso me parecera original, fantástico, admirável e pela manhã, antes que eu acordasse, a pobre vovó mandara comprar a pretinha para satisfazer o meu capricho e distrair a minha mágoa. E de fato, meu primeiro impulso foi de prazer; tomei a negrinha nos braços, ri-me com ela e beijei-a como as mãezinhas beijam os filhinhos recém-nascidos. Mas, enquanto a contemplava e embalava de encontro ao peito, reavivam-me as recordações  da cena da véspera. Lembrei-me da minha mãe, de minha irmã, da rispidez de minha avó ,e atirei a boneca para longe. Como, porém a pobre pretinha continuasse a rir, tornei a segurá-la. voltei a fazer-lhe carícias e chorei sobre ela, entregando-me à ilusão de um amor materno que mais excitava em mim o sentimento do meu amor filial ofendido. Em seguida tive uma vertigem  e deixei cair a boneca; à vertigem sucederam-se horríveis vômitos biliosos que muito alarmaram as criadas.

        Não sei o que aconteceu durante os dias que se seguiram, pois passei-os entregue à violenta  febre o sarampo. Essa moléstia certamente já estava incubada em mim, mas a excitação e o abalo nervoso precipitaram-lhe a manifestação e imprimiram-lhe maior intensidade. Fiquei muito mal, e uma noite tive uma visão que muito me atormentou. Tinham deixado uma lâmpada acesa no quarto onde eu  me achava. As duas empregadas dormiam e eu me mantinha de olhos abertos , cabeça em fogo. Tenho entretanto a impressão de que minhas ideia se conservavam lúcidas e que ao fixar a lâmpada eu me dava bem conta do que meus olhos viam. Sobre o pavio formara=se um grande cogumelo e a fumaça preta ia desenhar-lhe a sombra trêmula do teto. De súbito, o pavio transformou-se num homenzinho que dançava no meio da chama. Aos poucos foi-se destacando e começou a girar com uma rapidez vertiginosa, crescendo mais e mais, à medida que rodopiava, até que assumiu as proporções de um homem de verdade, depois a de um gigante, cujos pés pisavam o chão com estrondo, enquanto a sua cabeleira varria o teto em movimentos circulares com rapidez do voo dos morcegos.

        Pus-me a gritar apavorada e apressaram -se em serenar-me ; mas essa visão repetiu-se três ou quatro vezes e durou até o dia clarear. Foi a única vez que me lembro de ter delirado. Se depois isso se deu, não o percebi, ou não me recordo.





CAPÍTULO 2



         Embora a febre tivesse desaparecido, eu continuava ainda de cama, por precaução, e um dia ouvi Mademoiselle Julie e Rose comentando em voz baixa a minha doença e a causa que a agravara.

         Antes de mais nada devo dizer que para a infelicidade da minha infância vim a ser depois entregue de um modo excessivo ao domínio dessas duas criaturas.
         
         Rose já fora empregada em nossa casa no tempo de meu pai, e mamãe, reconhecendo as boas qualidades e a dedicação, como a encontrasse descolocada em Paris e desejasse ver-me entregue a uma pajem asseada e direita, persuadir minha avó a tomá-la para cuidar de mim, passear comigo e distrair-me. Rose era uma ruiva forte, trabalhadeira e intrépida. De aparência toda masculina montava a cavalo como um homem, galopando como um demônio, saltando valas , caindo Às vezes e abrindo a cabeça, mas acabando sempre tudo bom. Nas viagens, minha avó a tinha em conta de uma preciosidade, pois não esquecia nada, previa tudo, adaptava as corrente às rodas do carro, ajudava o postilhão a erguer-se quando caía, reajustava aos tirantes e, se fosse preciso, de bom agrado tomaria a si o governo do carro. Era uma rapariga cheia de vida, uma verdadeira camponesa da região de Brie , onde fora criada.
         
         Trabalhadeira, corajosa, direita, asseada como uma criada holandesa, franca e justa, ninguém a ultrapassava em bondade e dedicação. Só tinha um defeito de que com o tempo me apercebi e que provinha da ardente exuberância do seu temperamento: era violenta e bruta. Como gostasse muito de mim por ter sido minha pajem quando pequenina, mamãe julgou dar-me uma amiga, inculcando-a À minha avó; e Rose de fato me queria bem, mas com o seu gênio impulsivo e tirânico, mais tarde viria a oprimir-me, transformando o segundo período da minha infância numa espécie de martírio.

         Tudo lhe perdoei, entretanto e coisa estranha, a despeito da independência do meu caráter e dos sofrimentos que o seu despotismo me impôs, nunca cheguei a odiá-la. A explicação disso está em que Rose era sincera e generosa no íntimo e acima de tudo, na amizade que votava e sempre votou a minha mãe. Já com Mademoiselle  Julie dava-se exatamente o oposto. Era meiga, educada, nunca alteava a voz e em tudo revelava uma paciência angelical; mas tudo isso se revestia de uma certa hipocrisia, coisa que nunca tolerei em ninguém. Não nego que fosse dotada de grande inteligência. Ao sair de sua pequena aldeia de La Châtre, mal sabia ler e escrever, mas em Nohant todas as suas horas de folga eram dedicadas a leituras de toda espécie. A princípio , foram romances, pelos quais todas as criadas têm paixão, o que me leva a pensar nelas sempre que os escrevo. Depois vieram os livros de História e por fim as obras filosóficas. Ela conhecia o seu Voltaire melhor até que minha avó, e vi entre suas mãos o Contrato Social de Rousseau, que compreendia muito bem. Não houve livro de memórias conhecido que ela não devorasse e que não se gravasse em seu espírito frio, positivo e sério. Sabia de cor todas as intrigas da corte de Luis XVI, e Luís XV, de Catarina da Rússia, de Maria Teresa e de Frederico o Grande, e seus conhecimentos nesses terreno equivaliam aos de um velho diplomata; se alguém tinha dificuldade em desenredar o parentesco dos nobres da antiga França com as grandes famílias da Europa, podia consultá-la, pois não havia quem entendesse melhor desses assuntos que Julie. Não sei se depois de velha ela terá conservado essa aptidão e essa memória, mas no meu tempo era realmente erudita na matéria que citei e dispunha de sólidas noções de várias outras, embora não entendesse patavina de ortografia.

         Muito terei que referir-me a ela, pois muito me fez sofrer, e o serviço de informações que mantinha junto a minha avó em relação a mim, contribuiu muito mais para a minha infelicidade do que os gritos e maus tratos com que Rose, com a melhor das intenções , se empenhava em embrutecer-me. Não me queixarei, porém, nem de uma nem de outra. Ambas procuravam contribuir , na medida de suas possibilidades , e cada qual de acordo com o método que lhe parecia melhor, para a minha formação física e moral.

         Confesso que Julie me inspirava uma antipatia toda especial pelo fato de odiar minha mãe. Julgava ter encontrado nisso um meio de provar a sua dedicação a minha avó, entretanto mais era o mal que o bem que lhe fazia. Em suma, havia entre nós o partido de minha mãe, representado por mim, Rose e Ursule, e o partido de minha avó, a cuja frente se encontravam Deschartres e Julie.

         Devo dizer m oara fazer justiça Às duas empregadas de minha avó, que essa divergência de opiniões não as impediu de viver sempre em termo de grande amizade, e que Rose, sempre pronta a defender sua primeira patroa, nem por isso votava menor respeito e dedicação à segunda. Ambas trataram de vovó até o fim, com extremo carinho, e foram elas que lhe  fecharam os olhos. Perdoei-lhes , portanto, todos os desgostos e lágrimas que e custaram, uma com feroz solicitude de que me cercava, a outra com o abuso de sua influência junto a minha avó.

         Estavam, pois, ambas cochichando no meu quarto ( quantas coisas de família fiquei sabendo por intermédio delas, coisas que eu bem preferia ter sabido mais tarde!) e ouvi Julie dizer:

         -Esta pequena é uma tola de adorar a mãe como adora; a mãe nem lhe dá importância. Não veio visitá-la uma única vez desde que adoeceu!
        
          -Você está enganada, revidou Rose. Ela tem vindo todos os dias saber notícias da menina, mas não quis subir porque está zangada com Madame por causa de Caroline.
         Tanto faz, tornou Julie. Ela bem que podia ver a filha sem precisar falar com Madame, mas disse a Monsieur de Beaumont que tinha medo de apanhar sarampo. Não quer arriscar a pele.

        _Não é isso, Julie. Ela receia levar sarampo para Caroline. è muito natural que não queira ver suas duas filhas doentes ao mesmo tempo. Basta uma!

        Essa explicação me fez bem e serenou-me o desejo de rever minha mãe, que no dia seguinte chegou até a entrada do quarto e deu-me bom-dia da porta.

         -Vá-se embora, mamãezinha, respondi. Não entre. Não quero que você vá levar sarampo para Caroline.

         -Veja, disse minha mãe, dirigindo-se a alguém que estava ao seu lado. Aurore me conhece bem e é incapaz de acusar-me. Podem dizer-lhe o que quiserem de mim , nunca deixará de amar-me. 
          Essas pequenas cenas íntimas provam que havia em torno de minhas duas mães pessoas intrigantes que procuravam afastá-las uma da outra, envenenando ainda mais suas dissenções com mesquinhos mexericos. Meu pobre coraçãozinho principiava a sofrer com essa rivalidade. Sendo o motivo de um ciúme e de uma luta constates, era impossível que não me deixasse dominar por alguma prevenção, do mesmo modo como me tronara vítima dos sofrimentos que provocava.

         Assim que fiquei em condições de siar, minha avó agasalhou-me bem, tomou um carro e levou-me consigo \À casa de minha mãe, onde eu ainda não estivera desde que que regressa a Paris. Mamãe morava então à Rue Duphot, se não me engano, num apartamento pequeno, escuro e baixo, pobremente montado. A sopa fervia no fogão da sala. Tudo muito asseado, mas nenhum indício de abundância ou de desperdício. Tanto acusaram minha mãe de ter desorganizado a vida de meu pai, obrigando-o a contrair dívidas, que é para mim um alívio revê-la através da minha saudade, sempre econômica, quase avarenta consigo mesma.
          Quem veio abrir-nos a porta foi Caroline. Achei=a bonita como um anjo, com o seu narizinho arrebitado. Era mais desenvolvida para a sua idade do que eu em relação à minha ; menos morena, tinha traços mais delicados e uma expressão de finura um tanto fria e irônica. Mostrou-se absolutamente senhora de si, diante de minha avó, recebendo-a com a máxima cordialidade; beijou-me ardentemente, fez agrados, mil perguntas, ofereceu serena e altivamente uma cadeira a vovó e disse-lhe.

          -Sente-se , Madame Dupin; vou mandar chamar mamãe, que etá em casa da vizinha.

         Depois tendo incumbido  a porteira de prevenir nossa mãe, ( como não tivessem empregada, era a porteira quem lhes fazia esses pequenos serviços), voltou a sentar-se junto ao fogão, pôs-,e no colo e reiniciou suas perguntas e carinhos, sem dar maior atenção À grande dama que tão cruelmente a afrontara.

        Vovó por certo prepara algumas frases bondosas e dignas para dizer a minha irmã, a fim de cativar-lhe a confiança e consolá-la. pois esperara encontrar uma menina tímida, assustada, ou ressentida, e contara com uma cena de lágrimas ou de recriminações; vendo, porém, tudo sair ao contrário do que previra, creio que ficou um tanto surpresa e desconsertada, pois notei que tomava pitadas sobre pitadas de rapé.

         Minha mãe chegou minutos depois, cobriu-me de beijos e saudou minha avó com um olhar misto de secura e rancor. Esta compreendeu logo que teria de enfrentar a tempestade antes que desabasse.

          minha filha, disse-lhe em tom calmo e digno, por certo você compreendeu mal minhas intenções no que diz respeito às relações que devem existir entre Caroline e Aurore, quando a mandou ao meu apartamento. Nunca me passou pela cabeça contrariar minha neta em suas afeições. Nunca me oporei a que ela venha visitá-la, e a Caroline, aqui em sua casa. Façamos, pois, de conta, minha filha,, que não houve mal entendido algum entre nós a esse respeito.

          Era impossível sair-se de semelhante apuro com mais diplomacia, mais habilidade e maior justiça. Nem sempre se mostrara tão cordata em relação a esse caso. A princípio não quisera consentir que eu visse Caroline nem mesmo em casa de minha mãe, e estava se vira forçada a prometer que não me levaria ao seu apartamento quando saísse comigo, promessa que sempre observara fielmente. Vendo-me , porém, muito mais apegada Às lembranças e à afeição de minha irmã do que supunha, minha avó renunciara a uma decisão impraticável e cruel. Mas, embora fazendo essa concessão, conservara-se o direito de não receber em sua casa uma pessoa cuja presença lhe era desagradável Sua explicação hábil e clara não deixou margem recriminações  ; minha mãe o sentiu e deu todo por terminado. "Ainda bem, mamãe", respondeu-lhe, e passaram a conversar propositalmente sobre outras coisas. Minha mãe penetrara na sala com uma tempestade na alma e, como de costume, admirara-se, diante da diplomacia e da hábil firmeza da sogra, de ter de arrear as velas e regressar ao porto.

         Ao cabo de alguns instantes minha avó levantou-e e como tivesse outras visitas a fazer, pediu a minha mãe que ficasse comigo; na volta, passaria para apanhar-me. Era mais uma concessão mais uma delicadeza, com que dava a entender que não mais pretendia perturbar ou vigiar nossa expansões. Pierret chegou a tempo de conduzi-la pelo braço até o carro. Minha avó tratava-o com grande deferência devido À extrema dedicação que sempre votara a meu pai. Recebia-o muito bem e Pierret não fazia coro com os que instigavam minha mãe contra ela. Muito pelo contrário, sua preocupação sempre fora a de acalmá-la e aconselhá-la a viver bem com asogra. Suas visitas a minha avó, entretanto, eram raríssimas. Considerava sacrifício grande demais ficar meia hora sem fumar, sem fazer caretas e sem soltar uma praga ao fim de cada frase. 

         Que alegria experimentei ao rever-me no seio de que me parecia ser a minha única e verdadeira família! Não podia haver ninguém melhor do que minha mãe, mais amável do que minha irmã, mais engraçado e complacente do que Pierret! E aquele apartamento tão pobre e tão feio, comparado com os "salões acolchoados" de minha avó (era assim que por ironia eu os chamava) tornou-se para mim num abrir e fechar d'olhos a terra prometida dos meus sonhos. Explorava-lhe todos os recantos, contemplava embevecida os mínimos objetos, o reloginho de alabastro, os vasos de flores de papel amareladas sob redomas de vidor, as alfineteiras que Caroline bordara À chenilha no colégio, e até o pequeno aquecedor para pés, peça marcadamente proletária, desprezada pelos elegantes , sobre a qual eu fizera os meus primeiros improvisos romanescos na Rue Grange-Batellière. Que amor eu tinha a tudo isso! não me cansava de repetir a todo instante:

        _ Aqui, sinto-me chez-nous. Lá estou sempre em casa de vovó.

        -com mil diabos! praguejava Pierret. Não vá soltar esse chez nous diante de Madame Dupin, pois ela irá dizer que a estamos ensinando a falar em jargão de mercado!- e ria-se à s gargalhadas, pois para Pierret tudo era motivo de riso.

         Mnha mãe entrava a zombar dele e eu exclamava;
         _ Como a gente se diverte chez nous!

          Com um barbante entrelaçados nos dedos, Caroline fazia para mim camas de gato e ensinava-me a tirá-las de modo a obter mil variações. As ricas bonecas e os lindos livros de figura de vovó nada mais valiam para mim, comparados com esses ingênuos brinquedos que evocavam a minha infância. Sim, porque a, a despeito da minha pouca idade eu já tinha tido uma infância, um passado, recordações e saudades de dias perfeitos que eu nunca tornaria a viver.

        Tive fome e não havia chez nous bolos nem guloseimas; apenas a clássica sopa a que se resumiam nossas refeições. Minha sopa passou num minuto do fogão à mesa. Com que prazer revi o meu pratinho de barro louçado! Nunca me lembro de ter comido com mais apetite! Sentia -me como um viajante que retorna ao lar depois delongas atribuições e que acha tudo mais gostoso só por estar em casa.

         Minha avó veio, afinal, buscar-me. Fiquei com o coração apertado, mas compreendi que não devia abusar da sua generosidade. Acompanhei-a sorrindo, com os olhos rasos d'água.

          Minha mãe não quis, tampouco, abusar mais da concessão recebida e decidiu que minhas visitas à nossa casa seriam feitas só aos domingos. Eram os dias de saída de Caroline, que ainda continuava interna, ou que talvez já estivesse aprendendo seu ofício de gravadora de música que exerceu, até casar-se com muito trabalho e pouquíssimo lucro.

         Esse felizes domingos, tão ansiosamente esperados, passavam com a rapidez de sonhos. às cinco horas Caroline ia jantar em casa de minha tia, e eu saía com mamãe para a casa do tio de Beaumont, onde minha avó nos esperava para jantar.

          Esse jantar semanal, que reunia invariavelmente os msemos convivas, constituía uma doce tradição de família, hoje quase desaparecida em consequência da agitção e desordem que caracterizavam a vida moderma. Para pessoas de lazeres e hábitos regulares, entretanto, não havbia meio mais agradável e mais cômodo de se reunirem. A cozinheira de meu tio, verdadeira artista habituada a lidar sempre com os mais apurados e exigentes paladares, empenhava-se com todo seu amor proporio em satisfazê-los. Madame Bourdieu, governanta de meu tio, e ele próprio, supervisavam-lhe os trabalhos, convictos da sua importância. Às cinco horas em ponto eu e  minha mãe chegávamos , já encontrando minha avó e meu tio instalados junto ao fogo. Madame de la Marliére, sentada entre os dois, apoiava os pés sobre os cães da lareira, e sua saia soerguida, deixava-lhe a descoberto as pernas finas e os sapatos pontudíssimos. 

               Madame de la Marliére fora velha e íntima amiga da defunta condessa de Provence, esposa daquele que mais tarde reinou com o nome de LUIS XVIII.  Seu marido , o General de la Marlière morrera no cadafalso. Os leitores devem estar lembrados de que as referências a essa dama eram muito frequentes nas cartas de meu pai. Era uma mulher boníssima, muito alegre, expansiva, tagarelava, obsequiosa, dedicada, intelifente, irônica um tanto livre no falar. 

Maria Josefina na infância.

Nessa época , não tinha religião alguma e zombava dos curas e das coisas da Igreja com uma liberdade extrema. Com a restauração, tornou-se devota e viveu até a idade de  noventa e oito anos, creio, em odor de santidade. Era, em suma, uma excelente mulher, absolutamente despida de preconceitos na ocasião em que a conheci, e não acredito que algum dia tenha se tornado carola e intorelante. Depois de haver passado três quartos da sua vida desprezando e xombando das coisas sagradas, não teria esse direito. Foi sempre muito bondosa para comigo, e como, dentre as amigas de minha avó, fosse a única que não alimentasse prevenções contra minha mãe, inspirava-me mais confiança e amizade que as outras. Confesso, entretanto, que não a achava simpática. Sua voz clara seu sotoque meridional, suas roupas esquisitas, seu queixo pontiafudo com que, ao beijar-me , ameaçava-me furar as faces, e principalmente a crueza das suas piadas, impediam-me de levá-la a sério e de encontrar prazer nos mimos que me fazia. 

          Madame Bordieu corria da  cozianha para sala, e vice-versa, num rápido vai e vém, não tinha, nessa época, senão uns quarenta anos. Era bem morena, cheia de corpo e tinha um tipo muito marcado. Natural de Dax, falava com um soraque gascão ainda mais pronunciado que o de Madame de la Marliére, que gostava de fazer-se de criança, também lhe chamava assim, o que fazia o meu tio avô parecer mais moço que ela. 

          O apartamento em que ele sempre morou desde que o conheci, ou seja, durante uns quinze anos, ficava à Rue Guenégaud, ao fundo de um triste e sujo pátio, num prédio do tempo de Luis XIV  de estilo muito homogênio em todas as suas partes. As janelas eram altas e largas, mas havia tantas cortinas , tantos resposteiros, tantos biombos, tantos tapetes, impedindo o ar e a luz penetrassem pela mínima fresta, que todos os cõmodos eram escuros e abafados como porões. A arte de preseravar-se do frio na França, principalmente em Paris, começava a desaparecer sob o império, e tornou-se hoje de todo desconhecida entre as pessoas de tortuna média, a despeitos das inúmeras inenções de aquecimento econômico com que o progresso nos dotou.

         À moda , a necessidade e a especulação, que de mãos dadas nos induzem a construir casas com muito maior número de janelas, a pouca espessura das paredes e a pressa com que esses edifícios feios e frágeis se ergem, fazem que quanto menor for um apartamento, mais frio seja e mais dispendioso se torna o seu aquecimento. o de meu tio avõ era uma verdadeira estufa, cuja  temperatura ele mantinha cuidadosamente, numa casa abrigada e sólida como deviam ser todos os prédios de habitação, num clima ingrato e variável como o nosso. É verdade que antigamente quando alguém construía um lar, fazia-o certo de se instalar nele para toda a vida , e era como se ali cavasse o seu túmulo. 

          Os velhos que conheci nessa época levavam uma vida de retiro, quase sem sair do quarto.     Tinham um aplo e belo salão no qual recebiam uma ou duas vezes por ano, e onde, fora dessas ocasiões, quase nunca punham os pés.  Meu tio e minha avó, como não desses recepções, poderiam ter dispensado esse luxo inútil, que os obrigava a pagar um aluguel duas vezes maior. Mas se sentiriam desambientados sem o clássico salão de visitas. 

          O mobiliário de minha av[o remontava a época de Luis XIV e ela não tinha escr[upulos em acrescentar-lhe, de quando em quando, uma peça mais moderna que lhe parecia cômoda ou bonita. O tio de Beaumont, porém , era demasiadamente artista para fazer semelhante coisa. Tudo em sua casa obedecia ao estilo Luis XIV das molduras das portas ao ornato do forro. Não sei se teria herdado o seu rico mobiliário , completo em todos os detalhes, desde a tenaz e o fole, até o leito e as molduras dos quadros, seria hoje um tesouro nas mãos de um amador de antiguidades.  Havia em seu salão telas magníficas e móveis incrustados de um valor e de uma riqueza notáveis. Como tudo passara de moda e a nova geração preferisse, a esses belos ovjetos, verdadeiras ovras de arte, as cadeiras de tipo curul do império e as detestáveis imitações de Herculanum em  acajú folheado oem madeira bronzeada, o mobiliário de meu tio avô não tinha valor senão para ele. Eu estava longe de poder apreciar o bom gosto e o valor artístico de semelhante coleção de antiguidades, e muitas vezes ouvi minha mãe dizer que aquilo tudo era velho demais para ser bonito. Todavia, as coisas belas exercem uma atração que muitas vezes nem mesmo aqueles que não os compreendem conseguem escapar. Quando entrava no apartamento de meu tio, tinha a impressão de estar penetrando num misterioso santuário, e como o salção fosse de fato um santuário proibido, eu suplicava baixinho a Madame Bourdieu que me deixasse visitá-lo. E então, enquanto os velhos jovagam cartas, depois do jantar, ela munia-me de um pequeno castiçal e levava-me às escondidas até o vasto salçao, onde me deixava ficar por alguns momentos, recomendando-me muito que não subisse nos móveisnão pingasse  espermacete no assoalho.  Em seguida à risca as instruções, colocava o castiçal sobre uma mesa e passeava furtivamente pela enorme sala, cuja penumbra a luz fraca da vela refletida no teto mal lograva atenuar. Eu não via senão de um modo confuso os grandes retratos de Largillière, os belos interiores flamengos e as telas dos mestres italianos que recobriam as paredes. Adorava o cintilar dos dourados, as largas dobras das cortinas, o silêncio e o isolamento daquela respeitável sala que ninguém parecia atrever-se a usar e de que eu me apossava só para mim. 

          Essa posse fictícia me bastava, pois desde pequenina nunca a posse real das coisas, constituiu real prazer para mim.  Nunca nada me causou inveja em matéria de palácios, carruagens, joias  e até mesmo objeto de arteç entretanto , gosto de vistar um belo palácio, de ver passar uma carruagem rápida e elegante, de pegar e examinar joisas bem trabalhadas, de contemplar objetos de arte ou produtos industriais em que a inteligência do homem se revelou sob uma forma qualquer. Nunca porém senti necessidade de dizer a mim para mim. ''Isto é meu'' , e não posso mesmo compreender que se possa sucumbir a tal necessade. É tolice presentear-me alguém com um objeto raro ou preciososç não sei resistir á tentação de dálo ao primeiro amigo que o admirar e no qual eu perceba o desejo de possuí-lo. Só me apego às coisas que me vêm de criaturas queridas e mortas. Dessas, torno-me avara, por puro valor que tenham, e confesso que o credor que me forçasse a vender-lhe  os velhos móveis de meu quarto, muito me faria sofrer, pois eles pertenceram quase todos à minha avó e em todos os instantes de minha vida fizeram -me pensar nela,.  As coisas dos outros, porém, nunca me tentam, e sinto-me da raça daqueles boêmios de que Béranger disse 
                                             

                                          Ver é possuir.
                        

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